Uma esperança concreta
Em 6 setembro de 2015, na oração do Angelus, desde o Vaticano, o Papa Francisco apelou a que as paróquias, comunidades religiosas, mosteiros e santuários da Europa acolhessem uma família de refugiados. Ao fazer esse apelo, anunciou também que as duas paróquias do Vaticano iriam acolher duas famílias: palavras e gestos. E disse uma frase que se elevou sobre o discurso: “A esperança cristã é combativa, com a tenacidade de quem caminha rumo a uma meta segura.”
Nesse dia, nestas palavras, nasceu na Paróquia de São Tomás de Aquino, em Lisboa, o impulso de responder ao desafio do Papa. E o sonho cresceu discreto, mas com entusiasmo. Avançámos de coração cheio e de braços abertos, titubeantes às vezes, mas com as palavras e o gesto exemplar de coerência e entrega de Francisco a inspirar-nos sempre.
Estabelecido o protocolo com a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), restava-nos aguardar. No dia 14 de março de 2017, ao final da tarde, recebi um telefonema que nunca vou esquecer: a nossa família tinha nome e história, existia, Mohamed e Abdullah, sírios, pai e filho, sozinhos na Grécia, uma família tão pequenina de quem tínhamos apenas brevíssimos dados biográficos. Mas sabíamos algo fundamental: sabíamos que estavam à nossa espera, como nós deles, numa confiança quase às cegas, que agora releio com as palavras de Jorge de Sena: “sustentados pela força do amor que tudo manda, e pelo ímpeto da liberdade que tudo arrasa”.
Respondendo a vários apelos do pároco, Pe. Nélio Pita, CM, juntou-se informalmente um grupo de paroquianos voluntários que se disponibilizaram para distintos aspetos do acolhimento, conforme as orientações recebidas antecipadamente da PAR e alguma improvisação. Foi-se buscar os impressos para o passe, visitou-se a escola, o centro de saúde, a Loja do Cidadão, a rapaziada dos grupos de jovens deixou a casa num brinco, a comunidade e os amigos mobilizaram-se para a ter bem confortável e apetrechada, os meninos pequenos escolheram brinquedos, peluches e lápis, juntaram-se mimos em forma de detalhes, encheu-se a despensa com o que nos parecia bem, e as mãos de fada de uma amiga decoraram tudo fazendo inveja a qualquer catálogo de alojamento local.
No dia 3 de maio de 2017, pela hora do almoço fomos buscá-los ao aeroporto. Foi um encontro contido e tímido, mas ao mesmo tempo emotivo. Chegaram várias famílias nesse avião, mas nós só tivemos olhos para “a nossa”: gente franzina de corpo mas resiliente na alma, um encontro desde logo abençoado por uma empatia de que o menino Abdullah, na doçura ingénua da mão dada e do abraço oferecido espontaneamente, é o maior artífice.
Ao longo deste ano de acolhimento as maiores dificuldade foram com questões dependentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), nomeadamente a parca bolsa mensal, o cumprimento dos prazos e, no geral, a incomunicabilidade do SEF. As preocupações têm sido muitas, mas apoiados na generosidade de pequenos gestos temos feito um caminho partilhado e seguro. Podemos dizer sem hesitações que a nossa experiência é muito feliz, principalmente porque os vemos contentes, mas também porque ganhámos uma família alargada na Paróquia e na comunidade, construída à volta de duas pessoas que também nos acolheram como seus amigos.
Na citada oração do Angelus em que propôs o acolhimento de famílias de refugiados, o Papa instara-nos a “não dizer apenas: ‘coragem, paciência!’”, mas “dar-lhes uma esperança concreta”. Quando as exigências da agenda mediática teimam em relegar o tema dos migrantes e refugiados na Europa para segundo ou terceiro plano, o Papa insiste nele, numa fidelidade ao tema que é sobretudo fidelidade a Cristo. No Angelus do dia 1 de janeiro de 2018, Francisco repetiu o apelo sobre as pessoas refugiadas: “Não apaguemos a esperança no seu coração, não sufoquemos as suas expectativas de paz!”
Nas suas fragilidades, o trajeto geográfico e espiritual que o Mohamed e Abdullah fizeram de Damasco a Lisboa mostra o propósito de uma vida em paz.
É essa esperança, nada simples, mas muito clara, que continuaremos a construir.
Inês Espada Vieira,
Coordenadora do acolhimento na paróquia de São Tomás de Aquino.
Partilhe...