“Quero criar um JRS no Paquistão!”
Quantos ofícios cabem na vida de um homem? Ali, um ás da informática, já lavou carros, alisou paredes e colheu morangos. Tudo para obter os documentos que lhe permitem ter as mesmas oportunidades dos europeus. Só o conseguiu desde que, há mais de um ano, recebeu ajuda do JRS. “Aqui dão-te o apoio e a tranquilidade necessários para te integrares”, diz Ali. “Por isso é que eu quero fazer parte desta instituição e ajudar as pessoas que necessitam, sejam hindus, muçulmanas ou cristãs”.
Nasceu há 32 anos na Arábia Saudita, no seio de uma família paquistanesa cristã, mas ainda bebé levaram-no para [ uma cidade do Paquistão], quando as autoridades sauditas começaram a suspeitar da orientação religiosa da família. “O nosso apelido é islâmico mas o meu bisavô converteu-se ao cristianismo. Toda a minha família é cristã. Do lado do meu pai, temos uma tradição militar. O meu avô do lado da minha mãe morreu a protestar pela igualdade de direitos da comunidade cristã no Paquistão. E o meu tio é bispo de [ uma cidade do Paquistão], um dos cristãos mais prestigiados do continente asiático”, explica Ali, a quem, desde muito cedo, os computadores despertaram mais fascínio que as armas e as orações. Por pertencerem a uma classe eclesiástica, a família de Ali não foi alvo de perseguições, que existem mais na base da pirâmide social.
A mãe de Ali faleceu quando ele tinha 3 anos. O pai, incapaz de sustentar sozinho seis crianças, entregou-o à família do tio. Com 17 anos, no primeiro ano de Engenharia Informática, ficou sem o pai e foi forçado a desistir da universidade para trabalhar. Foi para uma empresa de IT que tinha a base informática das companhias aéreas; no início correu bem, mas depois de se ter queixado de trabalhar como um escravo sem receber mais por isso, começou a chocar com a direção. “Comia tanta fast-food para não parar de trabalhar, que fiquei com uma úlcera no estômago”, diz o paquistanês. “Um dia mandaram-me medir as 200 secretárias do escritório. Demiti-me. E mesmo quando me pediram para reconsiderar não voltei com a palavra atrás. Afinal, tenho disciplina de militar”. Ainda passou pelo departamento de informática da polícia, um emprego bem pago, mas faltava-lhe algo muito importante: “O diploma…eram todos licenciados e eu estava a ficar para trás. Decidi estudar no estrangeiro”.
Aos 26 anos, com muito esforço, conseguiu pagar um visto de estudante para o Reino Unido e todas as propinas iniciais. Em Manchester, a lei não lhe permitia ser assalariado. “Para me sustentar tive de aceitar trabalho ilegal na construção. Alisava as paredes, limpava os estaleiros e recebia metade do vencimento dos que estavam legais”, diz Ali, que passou ainda pela lavagem de carros. Mesmo assim, com quatro anos de sacrifício, conseguiu concluir o curso. “Só não tenho o diploma porque me pediram 2500 euros”, explica.
Entretanto, conheceu um paquistanês wahabita com quem construiu uma boa amizade. O homem tinha um negócio de marketing mas os sócios tinham fugido com o dinheiro e estava agora na penúria. Ali pôs mãos à obra e revitalizou o escritório. “Ele não me podia pagar um salário, mas pagou-me com fidelidade total. O advogado dele tratou-me da extensão do visto, dava-me alojamento e a amizade de que precisava”, recorda Ali. “Até que um dia me falaram de Portugal e me disseram que era o país mais aberto à imigração”.
Ali aterrou em Lisboa em Agosto de 2014. “Foi um desastre”, afirma. “Não conhecia ninguém e extorquiram-me logo dinheiro no Martim Moniz. Pediram-me 200 euros para irem às Finanças solicitar um número de contribuinte. Mais tarde, soube que podia ir sozinho e pagar 10 euros. Há muitos burlões no centro de Lisboa”. Após várias candidaturas a call-centers recusadas por falta de documentação, Ali foi aconselhado a empregar-se nas quintas do Algarve de forma a obter a autorização de residência. “Foi um dos maiores pesadelos da minha vida”, denuncia o paquistanês. “Apanhava morangos e framboesas. Ganhávamos 3 euros por hora, mais 50 cêntimos ao fim-de-semana. E tinha de acordar às 4h da manhã e chegar só às 23h. Vivia numa casa com 10 ou 15 homens, dormíamos numa cave. Era uma forma de escravatura moderna”. Ao terceiro mês, nomearam-no supervisor. A labuta aumentou mas conquistou o respeito dos demais funcionários.
Quando voltou a Lisboa, encontrou o dono da agência de imigração, um indiano, muito aflito no escritório. Num ápice, Aliresolveu os problemas informáticos pendentes. “Ele gostou tanto que me empregou mas despachou-me uns meses depois quando chegaram da Índia uns amigos dele necessitados de emprego”, afirma. Foi então que contactou o JRS. Assim que acabou de enviar o e-mail, o computador apagou-se. “Mas passados dez minutos o telefone tocou. Era a Filipa, do JRS, a chamar-me para entrevista no dia seguinte”, diz Ali, que acabou por ficar alojado no Centro Pedro Arrupe, centro de acolhimento do JRS.
“Desde então, o stress dos meus últimos cinco anos acabou. Aqui estão sempre a perguntar do que precisamos, estão sempre a chegar coisas novas e temos tudo sem custos financeiros”, diz o engenheiro informático. “Aprendi que somos todos iguais, que qualquer sem-abrigo tem os mesmos sonhos que eu. É por isso que quero fazer parte desta família e abrir um JRS no meu país. O Paquistão precisa de educação e não de guerras e uma instituição como o JRS ia ajudar muita gente”. Ali já recebeu a sua autorização de residência e prepara-se para ser operado à úlcera para depois resolver problemas informáticos em Portugal.
Tiago Carrasco, jornalista
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