“Acho que é amor e é esse amor que os cura”
Ana Paula Cruz (Lokas), 26 anos, é Médica de Família, e colaborou como voluntária na ilha de Lesbos, na Grécia, com a PAR, e nos campos de refugiados no norte de Angola com o JRS. Aqui fica o seu testemunho:
“A coisa que acho mais bonita e que é comum aos sítios magoados do mundo é que qualquer luz ilumina imenso, porque às vezes é escuro, e qualquer gesto de amor é muito poderoso e aquece muito, porque às vezes faz frio, até no coração.
Lembro-me de chegar a Lesbos, na Grécia, em missão com a PAR – Plataforma de Apoio aos Refugiados – no Inverno de 2016 e me assustar com o facto de campos de refugiados com tendas onde chove, com redes e arame farpado a toda a volta, serem a maneira que a Europa – a minha Europa – acolhia pessoas já tão magoadas. Como se perpetuássemos um ciclo de dor que já dura há tempo demais: a dor da guerra, a dor do que viram, do que viveram, do que perderam, a dor da despedida sem olhar para trás, a dor da incerteza da travessia, a dor de não se sentirem acolhidos. E isso torna-nos imprescindíveis nestes sítios e faz da missão da PAR na linha da frente ser o que é: é casa, é acolhimento, é amor. É alguém que te diz que és bem-vindo quando sentes que ninguém te quer aqui, é alguém que te diz que esta também é a tua casa quando o mundo te faz fugir há meses, é alguém que te abraça, que te fala de amor e de pontes quando só vês muros. Para além de ser casa, a PAR é também voz: voz de cada uma destas pessoas bonitas que conhecemos lá, cada um destes nomes, destas histórias de vida, cada um destes corações. É voz delas numa Europa que teima em silenciá-las, é voz delas quando ninguém as ouve.
Esta necessidade de ser voz e de ser casa levou-me mais recentemente aos campos de refugiados no norte de Angola, na fronteira com a República Democrática do Congo, em missão com o JRS – Southern Africa. Encontrei lá uma carga de dor que não é só pela natureza do conflito e por ser já tão arrastado, ou pelas condições tão precárias dos campos, ou pelas especificidades das feridas que carregam, é por tudo isso, claro, mas é sobretudo por ser um conflito tão esquecido por todos nós, tão longe dos nossos olhos e dos nossos corações. E muito mais do que o que podemos e sabemos fazer por eles, a missão é levarmos-lhes esta esperança de um mundo que os vê.
Uma das coisas mais bonitas de trabalhar com o JRS é que as feridas destas pessoas não nos assustam embora nos doam, muito. E ficamos, até ao fim, mesmo quando fica escuro, quando há problemas, quando morre alguém, quando dói a sério, simplesmente ficamos, cuidamos, sempre. Se eu pudesse resumir o que eu lhes tentava dizer, a cada um deles, através dos meus cuidados, enquanto médica, mas acima de tudo enquanto pessoa, eram estas quatro coisas mesmo simples: “a minha vida é sobre ti”, “eu consigo ver-te”, “a tua dor também me dói”, “vou fazer tudo o que souber para que doa menos”. Acho que é amor e é esse amor que os cura.
O especial destas missões, no dia a dia, com estas pessoas é que elas nos lembram do quão importante é assumir as feridas dos outros, assumir que estamos todos magoados, e quão importante é sermos bons, só bons. Lembram-nos do quão importante é olharmos cada um deles não como refugiados, como requerentes de asilo, como fugidos da guerra, mas como pessoas, como seres humanos. Quando conseguimos vê-los assim tudo muda, porque não é só sobre a guerra e os conflitos, mas a maneira como a guerra os magoou e continua a magoar todos os dias. A outra coisa mesmo especial é esperança que também eles nos dão, através da resiliência destes corações que continuam a sonhar apesar de doerem, através do amor que ainda são apesar de tudo de difícil que viveram, através desta alegria que ainda existe e que sobreviveu a momentos tão duros. Também eles nos dão esperança, nos cuidam, nos curam.
No fundo, somos uns para os outros esta esperança: a esperança de um amor que salva, nas pequenas coisas; a esperança de um amor que acolhe, a todos; a esperança de amor que cuida, sempre.”
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