Não desejo a ninguém aquilo que passei para aqui chegar
M. conta-nos a viagem que fez desde o Iraque até à Grécia, desde onde veio para Portugal.
No dia em que o Estado Islâmico (Daesh) invadiu Mossul, M. não viu polícias nem soldados. “Tinham fugido todos”, diz o iraquiano. “Eles chegaram à minha zona com três ou quatro carros, a disparar contra os prédios e a espalhar o caos. Foi assim, sem oposição, que conquistaram a cidade inteira”.
Guerra. Não era uma novidade para o professor de química que todas as tardes vendia também roupa no bazar; primeiro tinha sido a invasão americana, depois as lutas sectárias entre xiitas e sunitas, agora eram outros agressores, ainda mais bárbaros e sádicos que os anteriores. “As mulheres passaram a andar todas tapadas e havia patrulhas que obrigavam as pessoas a rezar. Eu nunca fui muito a mesquitas e negava-me a fazê-lo perante a patrulha”, diz M. “Até que um dia me enfiaram num carro e apresentaram-me aos líderes, que me disseram que seria castigado se continuasse a desrespeitar as regras. Eu já tinha visto como eles castigavam: fuzilamentos, forca, decapitações. Não queria viver assim. Nessa mesma noite fugi para a Síria”.
A viagem era quase tão perigosa como viver debaixo do jugo do Califado. M., conduzido por um contrabandista e disfarçado com uma djellaba (túnica) e barba farta, convenceu os combatentes fundamentalistas que controlavam a fronteira de que ia à Síria visitar familiares e que voltaria prontamente a Mossul. Descansaram uma noite na cidade síria de Deir Ezzor, onde cerca de 16 fugitivos se juntaram a ele no caminho para a Turquia. “Na noite seguinte, conseguimos passar por oito postos de controlo”, diz. “Mas perto da fronteira fomos detetados por combatentes do Daesh que nos perseguiram. Cada um fugiu para o seu lado, foi terrível, pensei mesmo que ia morrer ali”.
Não seria a última vez que a morte lhe passaria à tangente. M. e o contrabandista conseguiram atravessar a fronteira juntos, passando por debaixo de pontes e encontrando atalhos pelo meio de aldeias. Ainda foram alvejados por balas de borracha da polícia turca mas, finalmente, o iraquiano conseguiu chegar em segurança a Gaziantep, de onde partiu imediatamente para Istambul. “Estive alguns meses a tentar encontrar uma solução segura para viajar de barco para a Grécia. Havia muita gente a fazer o mesmo que eu”, conta o professor de Mossul. Um iraniano prometeu-lhe então uma viagem digna, sem sobressaltos, em troco de 2500 euros. M. acreditou. Mas quando chegou à praia deparou-se com uma velha embarcação de dois andares. E mais 300 passageiros prontos a embarcar. “Tinha tudo para correr mal”, admite.
E assim foi. 15 minutos após zarpar, o barco começou a meter água e naufragou. “Vi cadáveres a boiar, ouvi mães a gritar e a chorar e a água estava tão gelada que quase perdi os sentidos”, relembra. Já quase sem forças, olhou para o céu e viu um helicóptero: “Pensei que nos ia salvar mas estava a fotografar-nos e a filmar-nos”. Esteve três horas à deriva. Quando a esperança já se desvanecia, aproximou-se um navio da marinha norueguesa que criou uma onda enorme: “Uma amiga minha agarrou-se à filha mas não conseguiu segurá-la por causa da ondulação”. A menina morreu afogada. M. trepou ao barco com a ajuda de uma corda e de três refugiados.
O iraquiano não sabia que a primeira areia europeia que estava a pisar era a da ilha de Lesbos, na Grécia. “Fiquei num campo de refugiados durante dois meses e fui muito bem tratado. Havia agasalhos, comida e água e consegui ganhar a simpatia dos funcionários das Nações Unidas”, conta. Quando lhe pediram uma lista de países europeus onde gostava de obter asilo, escolheu a Alemanha, a Finlândia e a Bélgica. “Eram os sítios onde tinha familiares”, diz. Foi com esses destinos em mente que esperou três meses em Atenas pela deliberação, instalado num hotel. Até que lhe disseram que Portugal o tinha escolhido. “Eu protestei porque não conhecia ninguém em Portugal e os meus primos estavam todos no norte da Europa. Eles diziam-me que era um país pobre, que não me ia dar condições”. Uma caminhada até à Alemanha era, porém, demasiado arriscada. M. acenou a Lisboa e lá aterrou em Dezembro de 2015.
Não tinha nada; os islamitas tinham-lhe ficado com o carro, um KYA que adorava, no mar tinham-se desfeito 2000 dólares em notas e até o telemóvel onde tinha registado fotos do naufrágio colapsara com a água a atingir os circuitos. “Quero ver se ainda vou a uma loja pedir a alguém para me salvar o telefone, porque pode dar pistas para identificar o traficante e também para mostrar nos jornais portugueses o quão perigosa é esta viagem”, diz. Teve de começar do zero no Centro Pedro Arrupe (CPA), com a ajuda dos técnicos do JRS que começaram logo a tentar encontrar-lhe um emprego. “Trabalho é uma das coisas mais importantes porque preciso de me sustentar. Quero trabalhar num call-center ou numa loja de roupa”, afirma o refugiado. “A outra coisa que mais queria era trazer para Portugal os meus pais e as minhas três irmãs. Tenho muitas saudades deles. E sei que a minha mãe não consegue viver sem mim”.
A missão adivinha-se complicada. Devido ao facto de a lei de asilo não prever o reagrupamento familiar com os pais, mesmo que estes estejam a cargo do requerente de asilo, muito dificilmente se conseguirá o reagrupamento de M. com a sua família em Portugal. A única solução – e, ainda assim, sem garantias – passaria por uma viagem arriscadíssima da família de Mossul até à Turquia, de onde podia pedir a reinstalação. “Mas eu quero que eles voem diretamente para cá. Não desejo a ninguém aquilo que passei para aqui chegar. Muito menos aos meus familiares”, diz.
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